domingo, 23 de setembro de 2012

desenha-se um corpo em forma de ave
e uma ave em forma de corpo
um corpo capaz de abraçar
outro corpo
e os dois fazem um corpo que é mais que a soma dos dois
que é ave e que voa
e que amanhece na forma de lua e que cintila como as estrelas

desenha-se um corpo na montanha
um corpo que uiva e que geme e se debruça do alto
um corpo que plana docemente sobre a planície

Marc Chagall

um corpo branco como as casas
liso como sol que se derrama pelas janelas abertas

desenha-se uma manhã, após outra
o melhor possível
um corpo dentro de um corpo que se ama
e desse corpo estéril, se faz  rosa
 rubra e forte
e dela, apenas as vagas tormentosas
o cheiro da espuma
tropel de corações

e desse corpo arqueado sobre o sonho de outro corpo
se faz esperança
pequena e  frágil
ágil
volátil

trémula e viva.

domingo, 10 de julho de 2011

Milagres de Miranda




Aqui os anjos tocam seus alaúdes pela noite
e os pássaros entontecidos cantam ao luar.

Pelas estradas bordejadas de freixos, no rendilhado dos lameiros verdejantes, escondidas detrás de uma suave colina, espreitam as ninfas ao entardecer.

Na penumbra fresca da igreja que do sol inclemente protege os fiéis,
no segredo da terra barrenta que se prende a nossos pés,
sob a telha do estábulo, entre as bestas e o estrume,
no murmurejar da água que corre das fontes,
no zurrar distante do burro,
no balir das ovelhas,
são risos que se desprendem dos céus.
E mesmo aqueles que duvidam, se tornam crentes
E mesmo aqueles que desesperam, se tornam fortes.
Há qualquer coisa nesta terra de divino
Um sopro de vento e somos asas
Um bafejar de vaca e somos vivos
Uma oração e somos lágrima.
(...)
Não me admiraria se do alto de uma oliveira, sob um céu róseo, se erguesse uma doce senhora que a todos falasse sem pronunciar palavra e que por ali pairasse até ao anoitecer...
Há lugares como este em que os milagres acontecem
Naturalmente.

                                                                      Maria Terra

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Magia negra

                                                                
Mergulho as mãos no barro
Pulsante
E delas nascem, vagarosamente, casas, baloiços, vacas e burros, risos e gatos
Como?
Não sei.
É como se tudo,
Animais e coisas
Estivesse contido na terra
E um gesto bastasse para lhes devolver os contornos
E as mãos quentes chegassem para unir o que apenas parece fragmentado e informe.
Como num passe de mágica…


Maria Terra (texto e foto)

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

O que são as sementes de variedades agricolas «tradicionais» ?

O que são as sementes de variedades agrícolas tradicionais ou sementes crioulas?
No Brasil,designadamente no Estado de Alagoas, existem bancos comunitários de sementes. Esta é uma forma de reforçar a autonomia dos agricultores familiares e, também, de assegurar a manutenção da (bio)diversidade agrícola...
Segue-se uma reportagem sobre o tema, com data de 27 de maio de 2009, transmitida pela TV Educativa de Alagoas, da autoria de Fabrício Camboim com produção de Cibele Tenório, disponível no YouTube.




Em Portugal, a associação Colher para Semear, Rede Portuguesa de Variedades Tradicionais, assume-se como banco «vivo» de sementes e guardiã de diversidade agrícola...
Para saber mais sobre a actividade desta associação, vale a pena ver a reportagem de Carla Castelo no Terra Alerta emitido pela SIC a 18/6/2008.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

UTOPIA


Pintura de Vieira da Silva
UTOPIA

Cidade
Sem muros nem ameias
Gente igual por dentro
Gente igual por fora
Onde a folha da palma
afaga a cantaria
Cidade do homem
Não do lobo, mas irmão
Capital da alegria
Braço que dormes
nos braços do rio
Toma o fruto da terra
É teu a ti o deves
lança o teu desafio

Homem que olhas nos olhos
que não negas
o sorriso, a palavra forte e justa
Homem para quem
o nada disto custa
Será que existe
lá para os lados do oriente
Este rio, este rumo, esta gaivota
Que outro fumo deverei seguir
na minha rota?


José Afonso



(Utopia cantada por João Afonso)

A GREVE DAS PALAVRAS

Rigorosamente vigiadas,
Como ondas contidas à força de diques
Como cavalos a que puxamos violentamente o freio
As palavras vão-se morrendo
Lentamente
Asfixiadas, dentro do peito.

Flores adiadas para uma, sempre outra, Primavera
As palavras
Usurpadas
Desistem.
Entram em greve.
Paralisadas nas bocas.

E é assim que, como uma doença, o silêncio alastra nas nossas vidas.
O silêncio, como única arma
O silêncio, como último reduto das palavras,
Amadas.
                                                                   Maria Terra

A GREVE DAS PALAVRAS (versão áudio por Maria Terra)

Reflexões

As sementes sãs, tal como as boas ideias e os bons ovos, não são as que se quedam à tona d'água mas as que vão ao fundo.
O que não presta (se exceptuarmos o azeite, a cortiça e os nenúfares...) vem sempre ao de cima.
É essa, aliás, a única maneira de distinguir o indispensável do acessório. E, já agora, de sabermos o que geralmente vale a pena deitar à terra para que cresça e frutifique.
                                                                                                                                    
                                                                                                                                      Maria Terra (texto)